Brasília pelos caminhos do refúgio

Refugiados encontram, na capital do Brasil, uma nova oportunidade de seguir adiante e deixar vestígios da guerra no passado

A nova capital sempre foi vista, antes mesmo da inauguração, como uma terra de oportunidades. Os candangos – nome dado a quem veio para construir Brasília – ficaram por aqui e continuaram a atrair gente. Hoje, a cidade recebe uma nova leva de pessoas: são refugiados que buscam no Planalto Central uma nova chance na vida.

Ao deixar para trás uma situação estável e confortável para, junto com a família, fugir dos horrores da guerra no Oriente Médio, o casal Abd Jabbor, 51, e Jana Jabbor, 37, com três filhas, trocou a Síria por Brasília. Lá, a família viu duas casas onde morava serem bombardeadas.

Abd era engenheiro civil e, ao vir ao Brasil, não conseguiu trazer o diploma, dificultando a possibilidade de encontrar um emprego em sua área profissional. Jana era professora de árabe e inglês, mas aqui não encontrou ofertas de trabalho e decidiu apostar no poder da culinária árabe, verdadeiramente feita pelas mãos de uma nativa, com ingredientes vindos da região.

A família, que está em Brasília desde o fim de 2012, admite que ainda sonha em retornar para Síria, principalmente pelo fator renda mensal, que aqui nunca é fixa. “Por aqui tem tempo vendendo muito, tem tempo vendendo nada. Mas ainda sonhamos em voltar, mesmo que não agora. Todo dia falamos com minha família e a do Abd, que ainda estão no país, entre Damasco e Lataquia. Todo dia tem problema, acontece algo”, conta Jana.
Refugiados por continente Fonte: CONARE (Outubro de 2010)

A família Jabbor não é a única que encontra dificuldades entre os refugiados que escolheram o Brasil como a nova casa. O país tem sido um dos principais destinos para os imigrantes que se preocupam com as constantes guerras civis que ocorrem pelo mundo. Até mesmo deixando família para trás, estas pessoas buscam novas oportunidades não só de moradia, mas também de emprego. Existem, hoje, cerca de 60 milhões de migrantes forçados no mundo, dos quais 50% são crianças. Dos 60 milhões, 14 são considerados refugiados. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Justiça, o Brasil tem cerca de 8.950 refugiados.

Em 1997 foi dado um dos passos mais importantes para a defesa de assuntos migratórios no Brasil: a criação do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) que, hoje, é um órgão governamental, vinculado ao Ministério da Justiça. A função é não só analisar e decidir os pedidos de refúgio no país, mas também elaborar as políticas voltadas ao grupo, levando em conta a elegibilidade, mas, também, a integração local destas pessoas. O órgão é reflexo da junção do público-privado, conhecido como órgão tripartite, pois nele também têm voz a ONU, por meio da Agência para Refugiados (Acnur), e a sociedade civil, através da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e da Cáritas de São Paulo. É um misto de governo, Nações Unidas e sociedade civil.

O Conare foi essencial para a implementação do Estatuto dos Refugiados, que, hoje, garante documentos básicos, como identidade e carteira de trabalho, além de permitir a livre circulação em todo o território nacional, contando com outros direitos civis.

Migrante x Refugiado

É importante que se fundamente o termo “refugiado”, pois existe certa confusão quando o conceito aparece ao lado do termo “migrante”. Segundo a Acnur, refugiado é alguém que, por força maior, escapou de locais onde ocorriam conflitos armados ou que, por algum motivo, sofria perseguição, fazendo com que a vida, segurança ou liberdade estivesse em perigo. Já o migrante, opta por se deslocar buscando melhores condições de trabalho ou educação, até mesmo por reuniões familiares ou outras razões.

Em comparação aos refugiados, os migrantes nunca deixarão de receber proteção dos governos dos países de origem. Ou seja, os países que recebem os migrantes os tratarão seguindo as normas legislativas próprias dos países de origem. Em contrapartida, os refugiados lidarão com leis sobre refúgio e proteção dos refugiados já definidas tanto em âmbito nacional quanto internacional.

Refugiados por Estado no Brasil - Fonte: ACNUR (Abril de 2016)

De acordo com o Ministério da Justiça, em 2016, os sírios fizeram parte do grupo que mais procurou o Brasil como país de refúgio. Logo após, vêm os angolanos, colombianos, congoleses democratas e palestinos. Em um intervalo de cinco anos, o número de solicitações de refúgio cresceu mais de 2.868% – de 966 solicitações em 2010 para 28.670 em 2015. Há mais de 79 nacionalidades diferentes no grupo, onde 28,2% correspondem a mulheres. De acordo com Beto Vasconcelos, presidente da Conare, é o maior número de refugiados – reconhecidos – que o Brasil já recebeu em toda história.

Brasília, como a capital do país, tem sido uma importante cidade nesse cenário. Segundo os dados mais recentes da Polícia Federal, o número de estrangeiros na cidade corresponde a 17.393, dos quais 10.200 são permanentes, 7.081 são temporários e 4 são provisórios.

O processo de solicitação de refúgio é burocrático. O imigrante, assim que chega ao Brasil, deve se dirigir a um posto da Polícia Federal para solicitar o refúgio, na área de autoridade migratória, que fica nos aeroportos, portos ou fronteiras terrestres. Depois, o Conare, em primeira instância, irá aprovar ou não a solicitação. Caso haja a negativa, o estrangeiro pode recorrer, em segunda instância, ao Ministério da Justiça, em até 15 dias. Após esta sentença, não é possível recorrer. O pedido se estende aos cônjuges e à família.
Amjad Kalash pretende retornar ao seu país: “Vivi 21 anos felizes na Síria. Adoro aquela terra, aquele povo”

Amjad Kalash, sírio de 25 anos, saiu da capital Damasco há seis anos e optou por buscar refúgio em terras brasileiras pela possibilidade de ter uma vida normal. “Só tinha uma única condição: queria um lugar que me desse direito de trabalhar e ter uma vida em paz, com direitos de seres humanos normais”, explica o jovem, que, depois de sair da cidade natal, primeiramente buscou refúgio na Jordânia.

Em Amã, capital do país, Amjad ficou por cerca de 1 ano e 7 meses, passando por intensas dificuldades. O sírio conta que, naquele território, refugiados, principalmente vindos da Síria, não eram autorizados a trabalhar – mesmo que, na época, houvesse cerca de meio milhão de sírios na área, segundo a organização Médico Sem Fronteiras. No tempo em que ficou na Jordânia, Amjad foi autuado cinco vezes por trabalhar ilegalmente. Este foi o pontapé para a reflexão sobre buscar outro país. O Brasil foi o escolhido.

Os estrangeiros conseguem se estabelecer profissionalmente no país após a aprovação da solicitação de refúgio. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) expedirá a carteira provisória. Esse é um direito dos estrangeiros – exercer uma atividade remunerada – estabelecido pela lei 9.474/97. De acordo com o MTE, só em 2014, 14.669 carteiras de trabalho foram expedidas para estrangeiros. Já no DF, no mesmo período, foram 228.

Deixando um irmão que servia ao Exército na Síria, seus pais e uma irmã na Jordânia, Amjad desembarcou em Brasília no primeiro semestre de 2014, ao lado do irmão Ammar. Os dois conseguiram sobreviver, nos primeiros meses, com o auxílio da Igreja Batista Fundamentalista, em Taguatinga Norte, região administrativa do DF. Ambos moravam, de forma gratuita, em um pequeno quarto que a igreja cedeu.

Amjad optou por aprender o português sozinho. O sírio acreditava que, ao tentar entender a língua durante o cotidiano, ao lado dos brasileiros, seria mais proveitoso do que em aulas. “Queria me encaixar na sociedade e no povo brasileiro para aprender coisas que eu pudesse praticar no dia a dia. Aprendi a língua sozinho. Em cerca de 7 meses, já conseguia me comunicar”, garante.

Hoje, Amjad comemora as vitórias que conquistou nos três anos em que convive com uma realidade completamente diferente do que tinha na Jordânia – casa regularizada, trabalho fixo e melhores condições de vida. Há poucas semanas, seu irmão, Ahmad, que estava no Exército sírio, desembarcou em Brasília para começar uma nova vida ao lado de parte da família.

Auxílio por parte da sociedade civil

Em 1999 o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) surgiu com o objetivo de prestar atendimento direto aos imigrantes e refugiados que chegam ao país. Com sede em Brasília, a equipe do Instituto participa de reuniões, debates e seminários com intenção de manter a legislação brasileira atualizada em detrimento da dignidade humana e nas causas ligadas às políticas públicas da área.

Segundo a diretora do IMDH, irmã Rosita Milesi, os países que recebem imigrantes e refugiados devem designar uma atenção especial a esses grupos. “É importante considerar pelo menos três âmbitos de ação: receber, acolher e integrar. O IMDH atua nos três âmbitos, mas sempre no limite de suas possibilidades”. O instituto é apoiado pelo Comitê de Cidadania dos Servidores da Câmara dos Deputados. Somente em 2016, dois mil estrangeiros foram atendidos pelo IMDH.

A entidade insere estas pessoas na sociedade apoiando-as, incentivando atividades de geração de renda, na educação, na integração cultural, no apoio emergencial e assistência social, na saúde e no acompanhamento do processo de refúgio e documentação. Irmã Rosita frisa que é fundamental o acompanhamento contínuo da situação, principalmente por parte do Estado. “É importante ater-se a fases com exigências e necessidades diferentes: a atenção numa fase inicial, emergencial – da chegada até, pelo menos, os seis meses – e a fase de implementação e avanço nas ações e políticas voltadas à imigração”.

Ammar Nabout comemora a atual situação na capital brasileira: “Meus filhos gostaram muito daqui”

Ammar About Nabout, 42, sua esposa Yasmin e os três filhos formam uma das famílias que o IMDH estendeu a mão para ajudar. Após uma bomba cair perto de um dos filhos do casal, a família decidiu que já não dava mais para continuar na Síria. “Meu filho me disse: ‘pai, aqui tem guerra, eu quero sair para outro país. Onde, não sei”, recorda Ammar.

Em Damasco, Ammar era dono de uma loja de roupas, mas quando veio a Brasília decidiu que entraria no ramo da alimentação árabe – que faz bastante sucesso na capital. A família abriu, então, o restaurante Damascus, na Asa Sul, que vende não só comidas, mas também produtos vindos da Síria.

Hoje, três anos após a chegada à capital, Ammar olha para o passado com bons olhos: admite que o início não foi fácil, mas que, com auxílio de organizações como o IMDH, foi possível ver uma luz no fim do túnel. “Quando cheguei a Brasília sabia que aqui tinha o instituto. Conheci a irmã Rosita logo no início, e ela me ajudou me dizendo o que eu precisava para abrir a loja, além de me dar assistência para conseguir as maquinarias e, também, indicar meu restaurante, para que eu pudesse ter clientela”, comemora.

A luta para aprender o idioma

Uma das maiores dificuldades que os estrangeiros enfrentam assim que chegam em um país com um idioma diferente é conseguir se adaptar e aprender a nova língua. No caso do Brasil, o aprendizado do português, além de ser uma necessidade, se torna uma ferramenta de integração social. Nessa perspectiva, em Brasília, parcerias como a do IMDH com o Núcleo de Ensino de Português para Estrangeiros da UnB (Neppe) se tornam essenciais. Em 2016, 342 alunos de mais de 10 nacionalidades diferentes frequentaram aulas de português promovidas pelo IMDH e outras organizações na capital e conseguiram dar prosseguimento ao processo de aprendizagem.

O Neppe deu continuação à atuação do Programa de Ensino e Pesquisa em Português para Falantes de Outras Línguas, que cessou suas atividades em 2012, para que o novo núcleo pudesse expandir os objetivos, que não se resumem ao ensino do Português. No Neppe, há formação de professores, pesquisas relacionadas ao ensino e aprendizagem do idioma pelos estrangeiros, elaboração de material didático, acolhimento de estrangeiros, cursos para imigrantes, palestras e estágio de professores de outros países.

A professora Lúcia Barbosa, coordenadora do Neppe, acredita que o Brasil ainda tem muito a avançar para conseguir abraçar os refugiados, que cada vez mais procuram o país. “Acredito em um movimento mais amplo, com parcerias, planejamento e políticas públicas. O diálogo é importante e as parcerias são fundamentais”, comenta.
Zeeshan Syedg assume a paixão por Brasília. “Amo essa cidade. Aqui existe uma cultura aberta, amigável, mais familiar”
(Foto: Luz Fotografia)

Zeeshan Syedg, 33, paquistanês que mora em Brasília desde 2014, é um dos refugiados que frequentam as aulas do Neppe. Ele conta que saiu de seu país por medo de morrer durante a guerra civil e, também, por não se sentir livre. Ao pensar para onde poderia ir, imaginou o Brasil pela fama que de hospitaleiro. “Ouvi muito falarem sobre aqui, dizendo que os brasileiros recebem bem os estrangeiros, com carinho e amor. Também sempre gostei de assistir o futebol daqui”.

Nos três anos em que mora em Brasília, Zeeshan já trabalhou em restaurantes, confeitarias, feiras e oficinas de carros, mas, hoje, se dedica a produzir os famosos sanduíches paquistaneses Aaloo ka pratha. Ele entrega em domicílio e também vende em eventos voltados aos refugiados, como o “Sabores do Mundo”, organizado pelo coletivo brasiliense Bambuo, que trabalha com a celebração da paz na troca de experiências culturais da humanidade.

É neste sentido que Brasília é vista como a cidade que, de braços abertos, recebe imigrantes que buscam refúgio, apresentando novas oportunidades e formas diferentes de seguir a vida. O coletivo brasiliense Bambuo trabalha com a ideia de que o marketing de experiências realizado pela equipe tem o poder de atuar em projetos próprios e atender ONGs que trabalham com imigrantes resididos em Brasília, gerando visibilidade.

A coordenadora do grupo, Marina Miranda, aprecia a capacidade que a capital tem de receber essas pessoas que tanto precisam de ajuda. “A solidariedade do brasiliense é muito bonita. Muita gente de coração – que está de braços abertos – compreende a riqueza da troca intercultural”. Os projetos da equipe do Bambuo, “Mais Pontes Menos Muros” e “Taboca Design”, tem imigrantes que pedem refúgio como principal público-alvo.

Por Hanna Yayha.

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