A sociedade brasileira vem sofrendo, nas duas últimas décadas, sobrecargas de estresses emocionais que se agravam ano a ano. Podemos destacar três dessas sobrecargas que são mais resilientes e que se espraiam entre as famílias brasileiras. Uma sobrecarga de natureza distributiva: as políticas econômicas, ao enfatizar as questões do equilíbrio macroeconômico como objetivo dominante, não estão apresentando um equacionamento efetivo para as desigualdades sociais e regionais do desenvolvimento, para a escalada dos patamares da pobreza extrema e da miséria social, para a degradação do patrimônio natural pelo uso predatório dos nossos ecossistemas.
Daí o estresse de milhões de famílias brasileiras com a perda da qualidade de vida, do retorno à fome e das incertezas sobre o futuro de sua mobilidade social. Uma sobrecarga de natureza recessiva: de 1980 aos dias atuais, o Brasil vem se tornando um país de baixo crescimento econômico, apesar dos eventuais espasmos de crescimento com o fim do imposto inflacionário, com o Plano Real ou com o ciclo dos preços das commodities na pré-crise de 2008 na economia mundial.
Embora o processo de ajuste do desequilíbrio das contas do setor público consolidado seja uma condição necessária e indispensável para o País voltar a crescer, ele não é, contudo, suficiente. O crescimento econômico não é um subproduto cronológico de um ajuste macroeconômico qualquer. Um país somente cresce de forma sustentada quando consegue, no bojo de um ciclo de expansão econômica, criar um campo amplo e diversificado de oportunidades para os cidadãos realizarem os seus projetos de vida.
O Brasil é hoje um país de economia com baixo crescimento e com uma sociedade dividida pelas desigualdades e assimetrias nas condições de vida de sua população.
Historicamente, programas de austeridade fiscal que subestimaram os seus impactos redistributivos tenderam ao fracasso. As elevadas taxas reais de juros estão beneficiando os rentistas que detêm a parcela maior da riqueza financeira do Brasil. Os aumentos da carga tributária e das tarifas atingem, principalmente, os orçamentos da classe média. A redução dos gastos com a quantidade e a qualidade dos serviços públicos tradicionais prejudica o bem-estar social sustentável dos mais pobres, os que mais deles necessitam.
Uma sobrecarga de riscos e incertezas: é intenso o estresse emocional de um trabalhador desempregado, subempregado ou na economia informal que acorda de madrugada, pega um transporte coletivo de má qualidade, e vai à luta em busca de um salário precário e com o peso de uma enorme taxa de exploração social na jornada de trabalho.
Há uma fadiga e um estresse da nossa população com o quadro de incertezas diuturnas que são multiplicadas por governos de gestão pública inepta e insidiosa, sob suspeitas recorrentes de corrupção administrativa; governos que, por não ter uma proposta de visão do futuro para o País, atuam casuisticamente, de acordo com regras espúrias de permanência no Poder, as quais vão do clientelismo político ao capitalismo de compadrio. Precisamos vivenciar um processo de reconstrução nacional.
Poderíamos esperar que venha a ocorrer algum tipping point em busca de um projeto nacional de grande transformação da sociedade e da economia do Brasil? Há algumas expressões em outros idiomas que, quando traduzidas para a Língua Portuguesa, perdem força. Por isso, é preferível mantê-las no original. Um exemplo é tipping point, expressão que significa um ponto crítico no processo de evolução de um fenômeno, um ponto de ruptura ou um evento que conduz a um desenvolvimento irreversível ou até mesmo a um retrocesso inevitável.
O termo tem sua origem nos estudos da epidemiologia e é utilizado quando uma doença infecciosa atinge um ponto para além de qualquer habilidade local no sentido de controlar seu espraiamento mais amplo. É, muitas vezes, considerado como um ponto de inflexão, em geral provocado por algum evento menos significativo e aparentemente inesperado. Nesse sentido, há desastres ambientais que ocorrem como tipping points (rompimento de barragens) e outros que ocorrem de forma lenta e silenciosa, mas irreversível (a savanização da Amazônia).
No livro “O Cassino Climático”, William Nordhaus, da Universidade de Yale e laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 2018, afirma que quando um sistema experimenta uma profunda descontinuidade no seu comportamento ocorre um tipping point. E que o tempo exato e a magnitude de tais eventos são quase sempre impossíveis de predizer, como é o caso de uma corrida bancária. Eles podem ocorrer rapidamente e inesperadamente ou podem até mesmo não ocorrer. Cita como exemplos em relação às mudanças climáticas, o colapso de grandes geleiras, mudanças em larga escala na circulação oceânica, processos de realimentação em que aquecimento provoca mais aquecimento.
Pois bem, a economia brasileira já está acumulando um longo período de quase estagnação ou de recessão econômica, com concentração da renda e da riqueza nacional e desastres ambientais. Nesse contexto, já se somam mais de vinte milhões de brasileiros desempregados, subempregados e desalentados, acumulando uma avalanche de insatisfações, de frustrações e de infelicidade. Nessa avalanche, agregam-se os que estão perdendo o valor de sua renda real, os que estão inconformados com a crescente perda de qualidade dos serviços públicos essenciais e os que contestam os impactos concentradores de renda e de riqueza da atual política de austeridade fiscal e que padecem, portanto, do sequenciamento, da intensidade e da imprevisibilidade das sobrecargas emocionais estressantes.
Podemos esperar que, nesse contexto de nossa história, algum tipping point de rupturas e de dissensos críticos venha a acontecer? Creio que ainda não.
Desde a elaboração da Constituição de 1988, as lideranças políticas, empresariais e comunitárias têm procurado construir uma ordem econômica e social, politicamente negociada, que acomode os conflitos de interesse entre segmentos produtivos, grupos sociais, regiões, Estados e Municípios. Esse esforço político-institucional tem levado o País a “um status de homeostase econômica”.
A homeostase pode ser definida como a habilidade de manter o meio interno em um equilíbrio quase constante, independentemente das alterações que ocorram no ambiente externo. Para preservar a homeostase, o meio interno deve manter certos valores sem alterações. Os processos de mitigação, de compensação e de transformação político-institucionais garantem que, de forma coordenada, o equilíbrio interno entre os conflitos de interesse da sociedade venha a acontecer sem choques de descontinuidades no status quo.
Com as políticas sociais compensatórias (Bolsa-Família, Lei Orgânica de Assistência Social, Previdência Social, Auxílios Emergenciais), o Governo Federal consegue mitigar a profunda crise social que assola o País e beneficiar milhões de brasileiros mais pobres. Com a reprogramação orçamentária realizada de forma ad hoc, o Governo consegue mitigar crises setoriais e regionais localizadas através de cortes de contingenciamentos e de realocações das despesas públicas. Com a transformação das políticas de desenvolvimento em políticas de ajustes macroeconômicos envolvendo persistentes taxas de juros reais, consegue acomodar generosamente os rentistas financeiros. E la nave va!
O atual status de homeostase, que pode se prolongar por muito do tempo, nos dá uma certa ilusão de que não vivemos uma crise social nem uma crise ambiental. Na verdade, leva a maioria dos brasileiros a uma postura de conformismo latente, a uma ilusão de que basta atingir o equilíbrio fiscal que o crescimento virá por acréscimo, a imaginar que a estabilidade monetária poderá reconfigurar o estado de ânimo da sociedade brasileira ou a crer que os jovens brasileiros sejam conformistas e assistam passivamente a desconstrução e o esfacelamento dos seus sonhos e projetos de vida. Esses jovens, assim como os formadores da opinião pública, não estão conformados com esse processo cruel, difuso e silencioso de empobrecimento e de assimetrias sociais em nosso País, e propensos à construção de um tipping point, pois têm se manifestado publicamente contra o estado geral da Nação com relativa frequência.
Resumindo: o Brasil vive, atualmente, uma fase de homeostase econômica, ou seja, há uma tendência autorreguladora do organismo econômico que permite manter pelo menos o estado de equilíbrio interno de seus grupos de interesse de maior vocalidade política (os rentistas, os movimentos sociais, etc.), ou porque estão usufruindo das super taxas de juros reais ou porque estão conformados com as benesses distributivas. O que nos leva a perguntar: quem de fato quer mudar o Brasil?
No seu último livro, Mariana Mazzucato, experiente consultora internacional de gestão pública e consultora econômica do Papa Francisco, mostra os problemas enfrentados por um país como o Brasil, os quais exigem que os governantes saiam de sua área de conforto de homeostase; que renovem suas ideias e confrontem os problemas estruturais, complexos e resistentes a soluções simples, com inovações sociais, organizacionais e políticas; que assumam os riscos presentes em todas as inovações; que tenham uma visão de longo prazo e a certeza do que é preciso fazer e será feito pelo interesse público, a não ser que venham a fazer mais do mesmo e pior.
*Paulo Haddad é Membro do conselho consultivo no Instituto Fórum do Futuro. Economista, com especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais de Haia – Holanda, Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, ex-Ministro da Fazenda e do Planejamento. Presidente da PHORUM Consultoria e Pesquisas em Economia e Diretor da AERI – Análise Econômica Regional e Internacional.