Reforma tributária: ainda é cedo para comemorar

 

Samuel Hanan*

O Brasil terminou 2023 festejando a promulgação da Emenda Constitucional nº 132, a Reforma Tributária, há décadas reclamada para dar ao país melhores condições de desenvolvimento.

A Reforma Tributária de fato trouxe avanços, dentre eles isenções e reduções de até 100% nas alíquotas dos tributos sobre consumo. Outros, como serviços de educação, saúde, medicamentos, e cuidados básicos à saúde menstrual serão agora beneficiados com redução de até 60% das alíquotas dos tributos incidentes sobre o consumo. Também foram objetos de redução de 30% das alíquotas dos tributos aqueles relativos à prestação de serviços de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, submetidos à fiscalização pelos respectivos conselhos profissionais e, segundo o disposto na Lei Complementar, a ser enviada pelo presidente da República em até 150 dias da data da promulgação da EC nª 132, que ocorreu em 20 de dezembro de 2023.

O ponto mais relevante do texto promulgado foi, sem dúvida, a eliminação de 26 legislações que vigoravam no Sistema Tributário Nacional, até então um verdadeiro “manicômio tributário”, tamanho o número de leis no ordenamento jurídico incidentes sobre a tributação e consumo, agora substituídas por legislação única, vigente em todo o território nacional.

 

A reforma recebeu aplausos entusiasmados, porém é preciso alertar que ainda há muitos mecanismos a serem estudados, definidos e normatizados em Lei Complementar para dar efetividade prática à Emenda Constitucional. Essa questão específica é suficiente para frear a euforia provocada pela Reforma Tributária, uma espécie de unanimidade nacional carregada de ufanismo e otimismo.

 

É muito cedo para comemorar. Haverá muitos percalços em 2024, frutos de vários pontos preocupantes deixados para serem tratados na legislação infraconstitucional. Um deles é a alíquota-padrão da tributação sobre o consumo, cuja definição deverá se dar até junho de 2024. Em razão das exceções abrigadas pelas reduções de 100%, 60% e 30% de alíquota-padrão, e considerando que nenhum entre federativo (União, estados e municípios) devolve arrecadação, é possível prever que teremos essa alíquota-padrão fixada em 26,5%, 27,5% ou até mesmo 28%. Isso significa que, para os não apadrinhados pela reforma, o Brasil terá a segunda – ou talvez a primeira – maior carga tributária sobre consumo no planeta, muito acima dos 37 países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A título de exemplo, a tributação sobre consumo no México é de 16%, na Nova Zelândia, de 15%; na Alemanha, de 19%; na França, de 20%; no Japão e na Coréia do Sul, de 10%; no Canadá, de 12%, e nos Estados Unidos, em média, de 7,4%.

 

O impacto da alíquota-padrão é enorme. Podemos estimar que o consumo no Brasil continuará contribuindo com 15% do Produto Interno Bruto (PIB), 41,5% a mais do que a média dos países da OCDE, de 10,6% do PIB.


Outro problema será a transição de um sistema para outro, lenta e demasiado longa. Começará somente em 2026, último ano do mandato dos atuais mandatários (presidente da República, governadores e parlamentares do Congresso Nacional). Em nome da previsibilidade, criou-se um hiato no qual nada mudará para os atuais governantes. A transição será finalizada em 2033, ou seja, atravessará praticamente dois mandatos, uma eternidade em se tratando de Brasil.


Neste país, o risco é grande quando os prazos são tão longos. E temos exemplos na história. A Constituição Federal de 1988 admitiu, de forma explícita, a concessão de benefícios fiscais e/ou renúncias apenas para reduzir desigualdades regionais e sociais (artigos 3º, 43, 151, 155 e 165, parágrafos 6º e 7º) e o resultado disso, ao longo dos últimos 35 anos, foi o total desrespeito ao texto constitucional. De forma nada transparente e ao seu bel prazer, presidentes da República vêm concedendo renúncias fiscais em valores que somam mais de 4,5% do PIB, ou cerca de R$ 500 bilhões/ano. Já os governadores concedem benesses que totalizam de R$ 60 a R$ 80 bilhões/ano.


Esse abuso jamais teve fim. Pelo contrário. Em agosto de 2017, para garantir proteção aos governantes que descumpriram o texto constitucional contra eventuais ações de responsabilidade, foi sancionada a Lei Complementar 160, que legitimou retroativamente o concedido de forma ilegítima e ainda expandiu por mais anos os benefícios fiscais concedidos ilegitimamente. A Farra foi grande


De volta à EC 162, também merece observação que alguns pontos terão transição concluída após quase cinco décadas – 49 anos, para ser exato, de 2029 a 2077 -, após o fim do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do Imposto Sobre Serviços (ISS).


Teremos ainda um novo imposto federal sobre bens e produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente a ser definido em lei complementar.


O artigo 149-A da Emenda Constitucional prevê que os municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição para custeio, para expansão e melhoria do serviço de iluminação pública e segurança dos logradouros públicos.


Também deve ser considerado que a instituição de nova tributação sobre consumo é mais abrangente e alcança itens hoje isentos. Haverá tributação sobre serviços importados, inclusive direitos.


A EC modifica, ainda, o critério da partilha da parcela do recém-criado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) destinada aos municípios, priorizando com 80% de 25% - ou seja, 20% - em função da população local. Como tudo terá transição lenta, os prefeitos eleitos em 2024 não terão com o que se preocupar.


Pouco se falou também que vários fundos foram criados com recursos da União para repasse aos estados ou para gerenciamento compartilhado com esse ente federativo. Entre eles estão o Fundo de Sustentabilidade e Diversificação da Economia do Amazonas, o Fundo de Desenvolvimento Regional – visando reduzir desigualdades regionais e sociais; e o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiros-Fiscais para compensar, entre 1/1/2029 e 31/12/2032, pessoas físicas ou jurídicas beneficiárias de incentivos concedidos por prazo certo e sob condições.


Obviamente, fundos pressupõem aportes de recursos com fontes definidas e formas de correções de valores. Cabe a pergunta: de onde virão os recursos se hoje a União não dispõe de montante para investimentos, se não haverá aumento da carga tributária nem crescimento do PIB, e se não foi incluída na EC 132 uma linha sequer sobre redução dos custos da máquina pública, dos desperdícios e da corrupção?


É inevitável que tenhamos aumento da carga tributária e também crescimento do endividamento que financia os déficits nominais anuais. Até quando?


Necessário lembrar ainda que, simultaneamente à tramitação da PEC sobre tributação e consumo, o Governo Federal cuidou de buscar novas fontes de arrecadação por meio de maior tributação do Imposto de Renda sobre fundos exclusivos, offshores e trusts, e mediante a reoneração da tributação sobre emprego, tudo sem transição, entrando em vigor no primeiro dia de 2024, respeitando-se o princípio da anualidade. Com isso, serão arrecadados adicionalmente de R$ 120 a R$ 150 bilhões por ano, o correspondente a 1% do PIB nacional.


Outro ponto relevante não abordado na EC 132 – e que, portanto, precisa ser objeto de Lei Complementar a ser enviada ao Congresso até 31 de março de 2024 – é relativo à legislação sobre Imposto de Renda. O artigo 28 da EC diz respeito à não tributação da inflação, porque tributação não é renda, mas sim um ônus pesado para todos os contribuintes, onerados indiretamente pela falta enorme defasagem na tabela de correção do IR. Como a tributação sobre inflação não consta da Constituição e como não se pode criar impostos sem lei que os estabeleçam, as tabelas de correção do IR precisariam ser obrigatoriamente reajustadas anualmente pelo índice de inflação dos 12 meses anteriores, como forma de reparar o estrago causado pela defasagem. Determinar essa obrigatoriedade é, sem dúvida, obrigação do legislador para que a correção seja automática, e não mais um favor do governo de plantão. Se a correção da tabela do IR fosse aplicada em sua plenitude, mais de 90% dos trabalhadores assalariados estariam isentos do IR. Isso sim seria justiça social.


Sem dúvida alguma, a reforma tributária era necessária e veio com atraso porque o país convivia com uma infinidade de tributos e, como já se disse, com 26 legislações diferentes sobre o ICMS, por exemplo. O Brasil sempre e abusou de tributos sobre consumo e emprego, em vez de equilibrar a carga tributária com impostos sobre o lucro, capital e renda, modelo de há muito adotado pelos países desenvolvidos. Chegamos ao absurdo de nossa tributação sobre consumo alcançar patamar próximo de 15% do PIB, ou seja, perto de 45% do total da carga tributária nacional. Um exemplo bem-acabado de regressividade, punindo pesadamente os assalariados e os brasileiros das classes C, D e E.


O texto promulgado trouxe avanços, deve-se reconhecer. Mas a unanimidade e ufanismo em torno dele estão longe de encontrar respaldo na realidade. Eu, como cidadão comum, aplaudo com muitas restrições, pois não posso entender que, depois de dezenas de anos, seja promulgada EC alterando  o Sistema Tributário Nacional onde teremos (i) novos tributos, (ii) a 2ª ou 1ª maior alíquota de tributo sobre consumo do planeta, (iii) criação de diversos fundos da união sem a definição das fontes de recurso e o pior (iv) nenhuma linha sobre redução do gigantismo do estado brasileiro e menção a combate da corrupção. Há muitos passos ainda a serem dados e o caminho é extenso e perigoso. O otimismo exagerado não pode encobrir os riscos, ainda preocupantes. Estamos diante de mais um caso em que a embalagem é melhor do que o produto oferecido. Portanto, prudência!

 

Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br

 


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